Diabetes “A esperança no bisturi”


terça-feira abril 15, 2008

Uma cirurgia no intestino é a nova arma na luta
contra a doença. A técnica ainda é experimental,
mas seus resultados são impressionantes
Em sete anos, o diabetes arruinou a saúde da funcionária pública Legínia Miranda. Com o organismo combalido pela doença, ela estava ficando cega. Sua pressão arterial, sempre alta, atingia por vezes inacreditáveis 22 por 16 (o normal é 12 por 8). Legínia vivia abatida por um cansaço permanente e uma depressão profunda. A moléstia lhe impingia uma rotina penosa – comprimidos antidiabéticos, injeções de insulina, dieta austeríssima. Mesmo assim, sua glicemia não baixava. Girava em torno dos 300 miligramas de glicose por decilitro de sangue, mas freqüentemente chegava a 520 (o normal é 100, no máximo). Em 2005, aos 54 anos e prestes a se aposentar por invalidez, Legínia concordou em passar por um tratamento ainda experimental contra o diabetes tipo 2. Às 7 da manhã de 5 de novembro, ela deu entrada no centro cirúrgico do Hospital de Especialidades, em Goiânia. Nove horas depois, a doença já dava sinais de arrefecimento. Sem nenhum medicamento, sua glicemia baixou para 160 – um patamar jamais alcançado nos anos precedentes. Legínia experimentou uma melhora que, em outros tempos, seria chamada de milagrosa. Hoje, sua pressão está normal e a glicemia gira em torno dos 70 miligramas de glicose por decilitro de sangue. Com a visão recuperada, ela não precisa mais de óculos – nem para ler. À mesa, apesar da dieta equilibrada, delicia-se sem medo com pudim de leite e quindim. Nada, porém, se compara à felicidade de acompanhar as estripulias de Ana Carolina, a neta de 1 ano e 2 meses. Legínia agora tem fôlego. “Eu nasci de novo”, diz a funcionária pública.


Legínia é personagem de uma das mais arrojadas e fascinantes linhas de tratamento do diabetes tipo 2 – a intervenção cirúrgica. A operação para conter o diabetes é diferente de qualquer outra. Ela não se destina a trocar um órgão que funciona mal por outro em boas condições, como nos transplantes. Tampouco é feita para a implantação de um corpo estranho no organismo, de modo a fazê-lo trabalhar melhor. A cirurgia do diabetes combina simplicidade e engenhosidade. Os médicos estão conseguindo, com pequenas modificações na anatomia do intestino delgado, regular a produção de insulina no pâncreas e, com isso, restaurar as taxas de glicemia aos níveis normais. Em outras palavras, eles conseguem reverter o diabetes. A cirurgia é fruto de uma constatação nova e surpreendente: a de que o diabetes é uma disfunção cujas origens ultrapassam as fronteiras do pâncreas, o órgão produtor de insulina – hormônio responsável por retirar as moléculas de glicose da circulação sanguínea e levá-las para dentro das células, onde são transformadas em energia. O diabetes surge da falta ou da ineficiência da insulina, o que leva ao acúmulo de glicose no sangue. E o que é que o intestino delgado tem a ver com isso? Tudo.


Com 6,5 metros de comprimento e 4 centímetros de diâmetro, cheio de dobras e reentrâncias, o intestino delgado, além de promover a digestão e a absorção dos alimentos, funciona como uma espécie de fábrica de incretinas, a família de hormônios capaz de potencializar a secreção de insulina. Elas ajudam a baixar as taxas de glicose no sangue, sobretudo depois das refeições, quando esses níveis tendem a explodir. A descoberta do papel crucial das incretinas GIP e GLP-1 no controle do diabetes tipo 2 data dos anos 90. Nos diabéticos, a quantidade de GIP é normal e, não raro, apresenta-se até aumentada. Sozinha, porém, ela não consegue estimular o pâncreas a produzir insulina. Já em relação à GLP-1, o diabético padece de sua falta. Um doente tende a produzir um décimo do volume de GLP-1 secretado por uma pessoa sadia. O bisturi entra para corrigir essas falhas e restabelecer a sintonia entre os hormônios do aparelho digestivo e a insulina.


Para entender exatamente como funciona a cirurgia do diabetes, é preciso relembrar as aulas de biologia na escola. O intestino delgado é dividido em três regiões – duodeno, jejuno e íleo. Durante a digestão, depois de passar pelo estômago, o alimento chega à primeira porção do intestino delgado, o duodeno. Nesse momento, moléculas de GIP saem do duodeno e dirigem-se ao pâncreas, para estimular a secreção de insulina. Quando o alimento chega ao íleo, moléculas de GLP-1 são imediatamente despachadas para o pâncreas, onde potencializam a síntese de insulina. As duas técnicas cirúrgicas que estão sendo testadas facilitam a ação das incretinas, encurtando o período de digestão dos alimentos (veja quadro).


Fabiano Accorsi
 
“FOI UMA BENÇÃO”
Depois de amputar dois dedos do pé por causa do diabetes, Divaldo de Mello controlou a doença graças à cirurgia 



A experiência com um dos métodos foi relatada na edição de agosto passado da revista Surgical Endoscopy, da Sociedade Americana de Cirurgiões Gastrointestinais e Endoscópicos. O autor do artigo é o cirurgião Áureo Ludovico De Paula, do Hospital de Especialidades, de Goiânia. Ele é o criador da técnica de interposição do íleo. Feita por laparoscopia, a cirurgia consiste em aproximar uma parte do íleo do estômago, de modo a intensificar a produção de GLP-1. A operação prevê ainda a redução de 20% do estômago, o que reduz drasticamente a produção de grelina, o hormônio do apetite. Isso leva à perda de peso e, assim, diminui a resistência à insulina. Dos 39 pacientes citados no artigo da revista americana, quase 90% ficaram completamente livres do diabetes. De cada dez, três saíram do hospital sem necessidade de nenhuma medicação antidiabética – uma cura praticamente instantânea. “Se apenas metade desses resultados puder ser repetida, teremos uma revolução no tratamento do diabetes”, diz Alfredo Halpern, endocrinologista, da Universidade de São Paulo. A cirurgia tem efeito, ainda, sobre uma série de outras doenças associadas ao diabetes – hipertensão, colesterol alto e triglicérides em excesso. Há três semanas, uma equipe de pesquisadores da Escola de Medicina Mount Sinai, em Nova York, esteve no Brasil para aprender a técnica criada por De Paula. Eles vão começar a testá-la nos Estados Unidos. O sucesso da experiência brasileira serviu de incentivo para que os americanos se lançassem nessa empreitada. Até então, eles não haviam tomado essa iniciativa porque, lá, os protocolos de pesquisas com seres humanos são muito mais rigorosos e demorados.


Outro grupo envolvido no tratamento cirúrgico do diabetes é o coordenado pelo cirurgião José Carlos Pareja, chefe do Serviço de Cirurgia Bariátrica e Metabólica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Inspirado na técnica desenvolvida pelo médico italiano Francesco Rubino e batizado de exclusão duodenal, o método isola o duodeno e 40% do jejuno do processo digestivo. Com isso, o alimento chega menos degradado ao íleo e estimula a ação das incretinas. Até agora, Pareja operou quinze doentes. Todos tomavam injeções de insulina e antidiabéticos orais diariamente. Depois da cirurgia, os quinze se livraram das picadas, mas nenhum conseguiu abandonar a medicação por boca. O paulista Divaldo Faria de Mello, de 46 anos, passou por essa cirurgia. Em 2003, por causa do diabetes, ele teve de amputar dois dedos do pé direito, machucados durante uma partida de futebol. O excesso de glicose no sangue impediu que as feridas se cicatrizassem. A vida de Mello pode ser dividida entre antes e depois da cirurgia. Diz ele: “Não ter de tomar injeção todos os dias e conseguir comer de tudo, até feijoada, é uma bênção”.


Os médicos da Unicamp pretendem testar duas outras técnicas cirúrgicas contra o diabetes. Uma delas associa o desvio do duodeno à redução do estômago. A segunda prevê, além do desvio do duodeno, a retirada de 40% da gordura visceral – o tecido adiposo que se concentra na região abdominal e predispõe a pessoa a doenças cardiovasculares. A idéia, aqui, é diminuir sobremaneira a resistência à insulina, um dos fatores que mais influenciam o desenvolvimento do diabetes tipo 2. É provável que, num futuro não muito longínquo, vários tipos de operação convivam no catálogo de tratamentos disponíveis. “Sua indicação dependerá do perfil de cada paciente”, diz Pareja.


Quem primeiro levantou a hipótese de que o diabetes tipo 2 talvez pudesse ser controlado por meio de cirurgia foi o médico americano Walter Pories, professor de cirurgia e bioquímica da Universidade da Carolina do Leste, nos Estados Unidos. Num artigo publicado em agosto de 1995 na revista Annals of Surgery, sob o título “Quem imaginaria?”, Pories analisou a evolução, ao longo de catorze anos, de 608 obesos mórbidos submetidos à redução de estômago. Dos pacientes operados, 165 eram portadores do diabetes tipo 2. Graças à cirurgia, a maioria apresentou remissão da doença. Em seu artigo, Pories chamava atenção para o fato de que a reversão do diabetes acontecia pouquíssimo tempo depois da operação – em alguns casos, no dia seguinte. Ou seja, o controle da doença acontecia independentemente da perda de peso. Isso levou os pesquisadores a investigar o assunto. Foi então que veio à tona a relevância, na gênese da doença, das incretinas produzidas no intestino delgado.


Com 200 milhões de doentes no mundo, 10 milhões deles no Brasil, o diabetes foi descrito pela primeira vez no século II, pelo médico e filósofo Areteus da Capadócia. Trata-se de uma doença cujas causas não foram inteiramente mapeadas, apesar de todos os avanços. “As novas pesquisas mostram que a doença é muito mais complexa do que se pensava”, diz o endocrinologista Freddy Eliaschewitz, de São Paulo. Além do pâncreas e do intestino delgado, outros órgãos estão envolvidos no controle das taxas de glicose no sangue (veja quadro). Mais de uma dezena de substâncias interfere no equilíbrio da glicemia. Até o esqueleto participa da síntese de insulina. A equipe liderada pelo pesquisador Gerard Karsenty, da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, provou em experimentos com ratos que a osteocalcina, hormônio produzido pelas células produtoras de osso, tem o poder de estimular a secreção de insulina. Se for comprovado que a osteocalcina tem função similar nos humanos, isso poderá levar à criação de um novo tratamento para a doença.


Alguns especialistas costumam alarmar-se com o que seria uma epidemia de diabetes tipo 2 já em curso no mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2025 os doentes somarão 330 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos, estima-se que metade das crianças negras e hispânicas nascidas em 2000 desenvolverá a doença em algum momento de sua vida. Não importa o mecanismo pelo qual o distúrbio surge, o fato é que os estímulos externos são decisivos. Em especial, a alimentação rica em gorduras e o sedentarismo. Por esse ângulo, o diabetes tipo 2 é uma doença culturalmente provocada. Vencer suas causas culturais, portanto, pode ser, para a maioria dos doentes em potencial, uma maneira menos dolorosa do que tomar picadas diárias de insulina sintética ou entrar na faca