Criança com Deficiência Auditiva


terça-feira abril 1, 2008

A audição normal é importante para o desenvolvimento adequado da fala e linguagem. Alterações auditivas, mesmo pequenas e transitórias, podem estar associadas a distúrbios da fala e do aprendizado. Na verdade, a estimulação auditiva é importante não apenas para o desenvolvimento da linguagem, mas também para uma adequada interação da criança com o meio. O mecanismo de aquisição de linguagem antecede em muito o aparecimento da própria linguagem. A criança já nasce capaz de escutar. É neste momento que sua linguagem começa a se desenvolver, e a estimulação auditiva é importante para isso. Quanto mais cedo for identificado o tipo de perda auditiva e iniciado o tratamento ou adaptação, menores serão as seqüelas para a linguagem. Infelizmente, a perda auditiva presente desde o nascimento não é incomum. Aproximadamente uma em cada 1.000 crianças nasce com deficiência auditiva (DA), cuja intensidade varia de moderada a grave. Recém-nascidos com essa condição representam 80% dos portadores de DA permanente. Apenas 20% dos deficientes têm DA adquirida. Grande parte das crianças com deficiência auditiva neuro-sensorial pode ser identificada ao nascimento. Trabalhos recentes mostram que o resultado da estimulação e adaptação das crianças deficientes é melhor quando iniciado até o sexto mês. Portanto, o diagnóstico da DA deve ser o mais precoce possível, permitindo aproveitar estes primeiros meses onde o desenvolvimento da via auditiva parece ser maior. Além disso, embora a protetização de crianças com DA seja preconizada a partir do sexto mês (Joint Committee on Infant Hearing in the U.S.A. – 1994 Statement), a estimulação pode começar imediatamente após o diagnóstico da deficiência auditiva. Para se ter uma idéia do que ocorre ainda hoje, a média mundial de diagnóstico precoce da deficiência auditiva está entre os dezoito e trinta meses, mesmo nos países que adotam programas de detecção precoce desta. A adoção, cada vez maior, de programas de triagem auditiva no berçário é uma medida muito importante para antecipar o diagnóstico de DA, permitindo que tratamentos precoces melhorem o prognóstico de muitos deficientes. As manifestações da deficiência auditiva serão diferentes conforme a idade em que o diagnóstico for feito. Antes dos três anos, as queixas estarão relacionadas principalmente ao atraso no aparecimento da fala. Quanto mais atentos e cuidadosos forem os pais, mais cedo a possível deficiência será investigada. Após os três anos, distúrbios da fala serão evidentes. É grande o número de familiares e de médicos que não se preocupam em investigar alterações da fala. Cada criança desenvolve sua fala em ritmo próprio, mas alterações grosseiras muitas vezes são interpretadas como \”peculiaridades da criança\” ou como \”distúrbios transitórios que desaparecerão com o tempo\”. Após os seis anos, no período de alfabetização, aparecerão os distúrbios do aprendizado. Reabilitar uma criança que está com a fala atrasada é muito mais simples do que corrigir a que fala errado, que também é mais simples do que corrigir a que aprendeu errado.
Alguns fatores de risco estão claramente associados à maior incidência de deficiência auditiva (quadro 1). Populações expostas a tais fatores apresentam freqüência de DA até vinte vezes maior do que na população em geral. Portanto, a identificação da deficiência auditiva começa pelo reconhecimento dos diversos fatores que estão relacionados ao maior risco para perda auditiva. Na presença de algum destes fatores, a criança deve ser avaliada com muita atenção. É importante lembrar que estes fatores de risco estão associados ao aparecimento de deficiência auditiva permanente, envolvendo comprometimento da cóclea e/ou via auditiva.


Quadro 1 – Fatores de risco para deficiência auditiva


História familiar – Inclui história familiar de surdez ou presença de doença hereditária
associada a surdez, mesmo sem a existência de membros com DA na família


Malformações congênitas – Incluem as malformações diretamente ligadas ao
aparelho auditivo (orelha externa, média e interna) ou outras síndromes envolvendo
malformações da face ou sistema nervoso


Infecções congênitas – Incluem rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose, sífilis
e herpes. A história de qualquer infecção materna na gestação é considerada
fator de risco, mesmo na ausência de sinais de doença fetal.


Doenças perinatais – Principais fatores relacionados:
1 – Prematuridade (inferior a 32 semanas)
2 – Baixo peso (inferior a 1500g)
3 – Apgar baixo (no quinto minuto inferior a 3)
4 – Comprometimento do SNC (hemorragia intraventricular, convulsão ou meningite)
5 – Apnéia (principalmente quando utilizada ventilação mecânica)
6 – Hiperbilirrubinemia (principalmente quando resultar em exsangüíneo-transfusão)
7 – Utilização de antibióticos ototóxicos (ex: aminoglicosídeos)


Doenças pós-natais – Meningite bacteriana e outras doenças neurológicas



Classificação das deficiências auditivas


As DA podem ser classificadas conforme a intensidade da perda auditiva, correlacionada com a qualidade da perda da discriminação. Desta forma, nas perdas leves (até 30 dB) as alterações estariam relacionadas à dificuldade em entender a palavra a distâncias maiores do que um metro. Nas perdas moderadas (até 60 dB) haveria dificuldade em entender conversação em voz normal, mesmo a distâncias menores que um metro. Nas perdas graves (até 90 dB) a conversação não seria entendida nem em voz alta, apenas com protetização (quando indicada). Acima disso, estariam os casos de respostas residuais ou ausência de resposta sonora (surdez profunda = anacusia). Esta classificação simplificada é bastante útil para avaliação preliminar da perda auditiva do adulto. Entretanto, na avaliação da perda auditiva da criança é importante lembrar que pequenas perdas da audição, que não provocariam alterações no adulto podem interferir com a aquisição de linguagem e aprendizado nas crianças menores. Nesta população é importante a separação mais detalhada das perdas menores, sendo apropriada a classificação da criança nos seguintes níveis de audição:


0 a 15 dB:
audição normal


15 a 25 dB:
perda mínima


25 a 35-40 dB:
perda leve


40 a 60 dB:
perda moderada


60 a 90 dB:
perda grave



Em relação às perdas mínimas, alguns fonemas podem apresentar distorção. Dependendo da duração da alteração, pode haver distúrbio da linguagem na fase de aquisição. Em relação às perdas leves, medidas simples, como posicionamento do aluno nas cadeiras da frente, podem ser importantes. Também nas perdas leves e, principalmente nas moderadas, a protetização precoce da criança deve ser considerada, mesmo nas perdas menores, quando o desempenho escolar for insuficiente e outras possíveis causas para distúrbios do aprendizado forem afastadas.


Etiologia das deficiências auditivas


As DA podem ser causadas por alterações das diversas partes do aparelho auditivo. Conforme a região afetada, as DA serão classificadas em condutivas (doença das orelhas externa e média) e neuro-sensoriais (doença da orelha interna). As doenças condutivas geralmente causam alterações leves ou moderadas ao estímulo sonoro. Embora as alterações possam ser permanentes (doenças estruturais ou agenesias), os distúrbios transitórios são muito mais comuns. No entanto, dependendo da duração dos sintomas, especialmente em crianças na fase pré-lingual ou em início de aprendizado, uma perda pequena da audição pode desencadear distúrbio da linguagem e do aprendizado. Nas doenças neuro-sensoriais as alterações são sempre de caráter permanente, geralmente associadas a perdas maiores da audição. O diagnóstico precoce de qualquer tipo de perda auditiva é decisivo para o sucesso do tratamento ou da reabilitação necessária.


Deficiências auditivas neuro- sensoriais


As DA neuro-sensoriais podem ser divididas em hereditárias e adquiridas. No entanto, aproximadamente 50% das DA neuro-sensoriais não apresentam causa definida. Dentre aquelas de etiologia conhecida, as de origem hereditária representam 20-30% dos casos. A doença envolve algum tipo de alteração da estrutura da orelha interna. O caráter de transmissão pode ser dominante ou recessivo. É possível que o indivíduo seja portador do traço sem a presença de perda auditiva significativa. O reconhecimento do caráter hereditário é importante, pois também poderá ser passado de pai para filho. Algumas síndromes conhecidas são: Síndrome de Michel (ausência de desenvolvimento da cóclea); Displasia de Mondini (desenvolvimento incompleto da có-clea); Síndrome de Alexander (malformação do sistema membranoso coclear); Síndrome de Scheibe (degeneração membranosa co-cleo- sacular); Síndrome de Waardenburg (he-terocromia de íris + faixa branca no cabelo); Síndromes de disostose cranio-facial e cranio-mandibular (Treacher-Collins e Crouzon)
As DA neuro-sensoriais adquiridas podem ser divididas em pré, peri e pós-natal. As de origem pré-natal (5-10%) são determinadas pelas infecções congênitas, sendo a rubéola a mais comum. Também estão presentes nas infecções por citomegalovírus, toxoplasmose, herpes simples e sífilis. Em algumas infecções a deficiência auditiva pode ser a única alteração encontrada, como ocorre principalmente na doença pelo citomegalovírus. As causas peri-natais (10-15%) envolvem os diversos fatores relacionados com a maior gravidade e risco do trabalho de parto. As mais comuns são prematuridade, baixo peso de nas-cimento, icterícia neonatal prolongada, hipóxia, apgar baixo no primeiro e terceiro minutos, distúrbios hidroeletrolíticos, uso de antibioticoterapia e diuréticos ototóxicos, doença neurológica e doença respiratória. A maioria destes fatores está presente nos recém nascidos de maior gravidade em UTI neonatal .


As causas pós-natais de deficiência auditiva (10-15%) também são geralmente de origem infecciosa. A meningite é a causa mais comum.


Deficiências Auditivas condutivas


As DA envolvendo o sistema de condução ocorrem por alterações das estruturas da orelha externa e média.


Elas também podem ser divididas em hereditárias e adquiridas. As disacusias condutivas hereditárias estão presentes em diversas síndromes, geralmente relacionadas às malformações dos arcos branquiais. As alterações encontradas são permanentes, porém podem na maioria das vezes ser corrigidas ou minimizadas através de procedimentos cirúrgicos.


As disacusias condutivas adquiridas estão relacionadas principalmente às doenças infecciosas da orelha média. Embora as alterações encontradas nas otites médias possam ser permanentes (ex: otite média crônica simples, com perfuração da membrana timpânica), na maioria das vezes elas evoluem para cura. No entanto, a relação entre deficiência auditiva e otite média na criança não está restrita a este pequeno percentual de casos cronificados.


Sabe-se que pelo menos 2/3 de todas as crianças apresentam, pelo menos, um episódio de otite média na fase pré-escolar (até os cinco anos de idade), atingindo até 90% em algumas casuísticas. Um terço dessas crianças apresenta pelo menos três episódios de otite média até os três anos de vida. Dez por cento (10%) dessas crianças podem persistir com líquido na orelha média por até doze semanas. Durante este período, a criança será portadora de algum grau de perda de audição. De acordo com Northern e Downs, o limiar médio tonal ideal para uma criança é de 15 dB, diferentemente dos adultos, em que uma média de 20-25 dB é admissível. A acuidade auditiva maior na criança seria necessário para a distinção das pequenas diferenças entre alguns fone-mas mais parecidos. Nas otites médias, a perda de audição, mesmo transitória, está geralmente situada entre 25 e 35 dBnHL. A diminuição não é suficiente para fazer a criança deixar de escutar, porém pode dificultar a discriminação de determinados fonemas. Dependendo da idade da criança e do tempo que persistir, pode determinar maior dificuldade na aquisição da linguagem ou mesmo prejuízo no aprendizado. Diversos trabalhos mostram que existe relação entre otite média de repetição e distúrbios da linguagem e do aprendizado. Um fator que gera suspeição nestes casos é a mudança de atitude da criança. É comum crianças em idade escolar, portadoras de otite média secretora, apresentarem dificuldade de aprendizagem e desatenção na escola, levando os professores a classificá-las como \”vivendo no mundo da lua\”. O que intriga mais os pais é que às vezes a criança ouve palavras ditas em voz baixa e à distância e em outras vezes é necessário repetir as ordens ou perguntas. Isto é característico da audição flutuante, que está presente em crianças com infecções respiratórias de repetição. Um fator agravante desta situação é que as manifestações da orelha média nem sempre são dominantes no quadro clínico da criança, muitas vezes passando despercebido. O diagnóstico da deficiência auditiva nesta faixa etária é fundamental, porque quase todas os quadros são do tipo condutivo e respondem bem ao tratamento clínico e/ou cirúrgico. A timpanotomia e a colocação de um tubo de ventilação, com conseqüente correção da ventilação da orelha média e normalização da audição, podem operar verdadeiros milagres em todas as áreas da comunicação e da aprendizagem na criança